terça-feira, 26 de outubro de 2010

As lentes ébrias do bem e do mal

Dia desses acordei e, durante aquele breve instante em que você vai se dando conta de quem é e onde está, lembrei que era míope e logo me dei conta: não fazia idéia de onde estavam minhas lentes.


O dia anterior explica: eu e minha amiga no bar. Eu e minha amiga muito bêbadas no bar. Eu e minha amiga muito bêbadas na casa dela. Eu sem caixinha de lente. (...) --- e dia seguinte! Minha memória não conseguia ir além disso e eu não conseguia ir além do colchão porque as coisas não passavam de vultos sem nexo algum. Sem lente, sem óculos, sem memória, sem dignidade: essa era a minha situação.

Procurei a lente em todos os potinhos possíveis que eu poderia, alucinada, achar que convinha guarda-las. Eu nunca, nem em outros mil porres, nem nos meus piores dias, tinha esquecido de guardar as lentes – ainda que nos lugares mais improváveis – porque elas eram meu xodó, minha alforria do estereotipo nerd, meu tratado de paz com o espelho; não era possível que o meu eu bêbado me desapontaria tanto assim.

Uma hora, desisti e fui embora arrasada. Passei o dia em casa, de óculos, cabelo pro alto, comendo muito, disposta a me tornar um ogro gordo e solitário até ter dinheiro pra comprar outro par.

Mas no dia seguinte vieram as vozes. E elas não paravam de me mandar buscar o que era meu, e eu fui. Entrei no quarto dela certeira, fui direto no armário e abri o pote que me viera a cabeça: lá estavam elas. Nem eu mesma acreditava.

Naquele dia, senhores, principalmente naquele dia, eu percebi que Deus existia, e que, ao contrário do que muitos pensam, chega a conversar conosco sem intermediários. Mas uma coisa é certa: o paraíso é um marasmo, por isso somos as marionetes de sua divina comédia. E nada me tira da cabeça que quando eu botei aqueles lentes nos olhos de novo e enxerguei o mundo com nitidez, era ele que me olhava no espelho dizendo, mais uma vez: “Te peguei, hein?”

E comecei a ver que era esse o acordo de quem bebe: um dia rindo com o Diabo pra no dia seguinte Deus – e o Diabo – rirem da gente.

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