Dia desses acordei e, durante aquele breve instante em que você vai se dando conta de quem é e onde está, lembrei que era míope e logo me dei conta: não fazia idéia de onde estavam minhas lentes.
O dia anterior explica: eu e minha amiga no bar. Eu e minha amiga muito bêbadas no bar. Eu e minha amiga muito bêbadas na casa dela. Eu sem caixinha de lente. (...) --- e dia seguinte! Minha memória não conseguia ir além disso e eu não conseguia ir além do colchão porque as coisas não passavam de vultos sem nexo algum. Sem lente, sem óculos, sem memória, sem dignidade: essa era a minha situação.
Procurei a lente em todos os potinhos possíveis que eu poderia, alucinada, achar que convinha guarda-las. Eu nunca, nem em outros mil porres, nem nos meus piores dias, tinha esquecido de guardar as lentes – ainda que nos lugares mais improváveis – porque elas eram meu xodó, minha alforria do estereotipo nerd, meu tratado de paz com o espelho; não era possível que o meu eu bêbado me desapontaria tanto assim.
Uma hora, desisti e fui embora arrasada. Passei o dia em casa, de óculos, cabelo pro alto, comendo muito, disposta a me tornar um ogro gordo e solitário até ter dinheiro pra comprar outro par.
Mas no dia seguinte vieram as vozes. E elas não paravam de me mandar buscar o que era meu, e eu fui. Entrei no quarto dela certeira, fui direto no armário e abri o pote que me viera a cabeça: lá estavam elas. Nem eu mesma acreditava.
Naquele dia, senhores, principalmente naquele dia, eu percebi que Deus existia, e que, ao contrário do que muitos pensam, chega a conversar conosco sem intermediários. Mas uma coisa é certa: o paraíso é um marasmo, por isso somos as marionetes de sua divina comédia. E nada me tira da cabeça que quando eu botei aqueles lentes nos olhos de novo e enxerguei o mundo com nitidez, era ele que me olhava no espelho dizendo, mais uma vez: “Te peguei, hein?”
E comecei a ver que era esse o acordo de quem bebe: um dia rindo com o Diabo pra no dia seguinte Deus – e o Diabo – rirem da gente.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Do desejo
Quando ele vem:
Se me deseja, que seja com calma
Porque o desejo, pra não morrer,
Sabe morder a alma
E a alma não sabe esquecer
Quando ele vai:
Se a vida é passageira
Mais ainda é o cortejo
Tanto que não sei
se fui eu que passei
Ou se o que passou
foi o desejo
...
Se me deseja, que seja com calma
Porque o desejo, pra não morrer,
Sabe morder a alma
E a alma não sabe esquecer
Quando ele vai:
Se a vida é passageira
Mais ainda é o cortejo
Tanto que não sei
se fui eu que passei
Ou se o que passou
foi o desejo
...
terça-feira, 5 de outubro de 2010
"Quem anda atrás/ de amor e paz/ não anda bem"
Quis te odiar, mas você não deixou. Me prometeu o pote de amor no fim do seu arco-íris psicodélico, cheio de fantasias e feitiços; me fez correr feito louca, tentando alcançar essa chegada. Esse final. Tentando te alcançar.
Quis te amar, mas você não deixou. Sempre escorregadio. Tão certeiro em cada flechada que me acertou cabeça e coração, me conquistando com sua cultura e com seu carinho. Como pode ser normal alguém que não sabe usar vírgulas me trapacear com palavras?
Em vez de amar, se armou. Se eu tento escrever você fala (bem), se eu tento dançar você toca (bem), se eu tento sair você chega (bem). Você é bom e eu sou boazinha demais.
No sertão sentimental que você me jogou, ainda disfarço tentando não me derreter com suas miragens de amor, com a doçura das suas palavras que se desmancham no ar antes de me tocarem os sentidos... e eu, curiosa que sou, me pego pensando: até onde ele vai?
Vá, querido. Saia do conforto do seu reinado e vá se aventurar nos desertos da alma, se perder em novos desafios. Te perdôo por me usar, por me subestimar e por não me querer conhecer em toda a minha infinitude pessoal e intransferível. Quanto a minha deusa, eu já não sei. Ela rodou a baiana avisando que vai querer uma oferenda magrela: você.
(Tem gente que entra na nossa vida pra ser amada. Outras, só pra se transformar em Literatura mesmo.)
Quis te amar, mas você não deixou. Sempre escorregadio. Tão certeiro em cada flechada que me acertou cabeça e coração, me conquistando com sua cultura e com seu carinho. Como pode ser normal alguém que não sabe usar vírgulas me trapacear com palavras?
Em vez de amar, se armou. Se eu tento escrever você fala (bem), se eu tento dançar você toca (bem), se eu tento sair você chega (bem). Você é bom e eu sou boazinha demais.
No sertão sentimental que você me jogou, ainda disfarço tentando não me derreter com suas miragens de amor, com a doçura das suas palavras que se desmancham no ar antes de me tocarem os sentidos... e eu, curiosa que sou, me pego pensando: até onde ele vai?
Vá, querido. Saia do conforto do seu reinado e vá se aventurar nos desertos da alma, se perder em novos desafios. Te perdôo por me usar, por me subestimar e por não me querer conhecer em toda a minha infinitude pessoal e intransferível. Quanto a minha deusa, eu já não sei. Ela rodou a baiana avisando que vai querer uma oferenda magrela: você.
(Tem gente que entra na nossa vida pra ser amada. Outras, só pra se transformar em Literatura mesmo.)
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
“Pouco amor não é amor.”
Nelson Rodrigues
É preciso estar atento e forte
pra reconhecer que existem mil razões pra se estar com alguém. Do tesão ao tédio, do interesse a insegurança, dos feromônios aos fetiches, do egoísmo ao exibicionismo; motivo não falta pra que uma pessoa faça sentido em determinado momento.
Mas aí entra a doença do amor. Como disse Gullar, “como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa?”
Se alguém soubesse como se dá, não duvido que muitos tomariam vacina – mas que doença inesquecível, Gullar! Que bom é, de uma hora pra outra, sentir o toque do que é divino e eterno, etéreo e infinito. Bom é, por 1 dia, um ano (chega a tanto, o tal do amor?) sentir que talvez a vida não tenha mesmo sentido, mas que a falta de sentidos que o amor causa é bom demais.
Seria leviano da parte do meu coração se eu não reconhecesse o porém do amor: doença particular e de tipo pessoal, tô pra ver quem encontre amor correspondido. Cada um ama de um jeito – SE amar! Quantos namoros e casamentos são sustentados pelo amor incondicional de uma das partes, amor quiçá platônico, com a criminosa condescendência do lado privilegiado de carinho? Melhor: quantas vezes pusemos certos alguéns em nossos altares sagrados, fazendo inimagináveis concessões de corpo e de alma – cegos o suficiente pra não percebermos a indiferença de nossos adorados deuses? É: elevar alguém a deus é condenar o nosso próprio amor a viver numa dimensão abaixo do ser adorado.
Vai: a maioria de nós sabe dizer por quem jogaria tudo pro alto, trocaria de nome. E se quando nós desencantamos de alguém não entendemos por que diabos haveríamos de achar aquela pessoa perfeita, o pior é não desencantar e ver que a outra pessoa até nos achava uma boa companhia, mas era apaixonada pelo ex, odiava quando fazíamos sexo – e a gente perdoando cada defeito enorme sem pestanejar! Eu concordo, Gullar: o amor é uma doença como outra qualquer.
Doença irônica: enquanto eu o amava, ele amava sua ex, que já tava com o outro, que olhava pra outra, que já tinha namorado... namorado que eu roubei e que me amava, mas eu ainda amava o outro. O amor é como uma quadrilha qualquer.
Se é crime prosseguir por preguiça uma relação com alguém que nos ama, eu não sei e certamente seria difícil criar uma lei para punir esses casos. Mas deixe-me romancear: crime mais grave ainda é não amar. E isso eu nem sei como é, mas conheço gente que não ama e que diz que o mundo parece meio chato e simples demais...
Nelson Rodrigues
É preciso estar atento e forte
pra reconhecer que existem mil razões pra se estar com alguém. Do tesão ao tédio, do interesse a insegurança, dos feromônios aos fetiches, do egoísmo ao exibicionismo; motivo não falta pra que uma pessoa faça sentido em determinado momento.
Mas aí entra a doença do amor. Como disse Gullar, “como pode acontecer que, subitamente, num mundo cheio de pessoas, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou fulana, que é impossível viver sem essa pessoa?”
Se alguém soubesse como se dá, não duvido que muitos tomariam vacina – mas que doença inesquecível, Gullar! Que bom é, de uma hora pra outra, sentir o toque do que é divino e eterno, etéreo e infinito. Bom é, por 1 dia, um ano (chega a tanto, o tal do amor?) sentir que talvez a vida não tenha mesmo sentido, mas que a falta de sentidos que o amor causa é bom demais.
Seria leviano da parte do meu coração se eu não reconhecesse o porém do amor: doença particular e de tipo pessoal, tô pra ver quem encontre amor correspondido. Cada um ama de um jeito – SE amar! Quantos namoros e casamentos são sustentados pelo amor incondicional de uma das partes, amor quiçá platônico, com a criminosa condescendência do lado privilegiado de carinho? Melhor: quantas vezes pusemos certos alguéns em nossos altares sagrados, fazendo inimagináveis concessões de corpo e de alma – cegos o suficiente pra não percebermos a indiferença de nossos adorados deuses? É: elevar alguém a deus é condenar o nosso próprio amor a viver numa dimensão abaixo do ser adorado.
Vai: a maioria de nós sabe dizer por quem jogaria tudo pro alto, trocaria de nome. E se quando nós desencantamos de alguém não entendemos por que diabos haveríamos de achar aquela pessoa perfeita, o pior é não desencantar e ver que a outra pessoa até nos achava uma boa companhia, mas era apaixonada pelo ex, odiava quando fazíamos sexo – e a gente perdoando cada defeito enorme sem pestanejar! Eu concordo, Gullar: o amor é uma doença como outra qualquer.
Doença irônica: enquanto eu o amava, ele amava sua ex, que já tava com o outro, que olhava pra outra, que já tinha namorado... namorado que eu roubei e que me amava, mas eu ainda amava o outro. O amor é como uma quadrilha qualquer.
Se é crime prosseguir por preguiça uma relação com alguém que nos ama, eu não sei e certamente seria difícil criar uma lei para punir esses casos. Mas deixe-me romancear: crime mais grave ainda é não amar. E isso eu nem sei como é, mas conheço gente que não ama e que diz que o mundo parece meio chato e simples demais...
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